Gabinete de Curiosidades

LUÍS FILIPE SARMENTO


1.

No parque tecnológico do gabinete de curiosidades, o ecrã hipermoderno é exuberante na sua informação premeditada da ignorância. 
No paradoxo do presente, há dois passados em confronto: o que se desconhece e o que reacionariamente se exalta. O futuro-alvo é um domínio do efémero: o que existe já não existe. Nesta liturgia, celebra-se o presente e a identidade como expressão de uma vontade aparentemente própria e liberta de anátemas; valoriza-se o que é novo numa representação «vintage», a dessacralização do acesso, a afirmação do indivíduo que se perde em si e ignora por desconhecimento imposto o valor solidário da vida. Como fogo no subsolo das consciências, propaga-se o que é, mas já foi, num exercício hiper-rápido de sedução, num jogo de diferenciações, na apoteose do efémero. Brilha na montra o falso diamante da libertação das tradições enquanto há um regresso anacrónico ao tradicional, ao obsoleto como estojo de uma aparência social fora do real. Neste jogo de espelhos subvertidos na fábrica há quem afirme a sua autonomia quanto mais dependente se torna da arenosa novidade que lhe foge por entre os dedos. Na sociedade dos magros, os obesos ganham peso nesta essência individualista do paradoxo. A ignorância e a falácia surgem como elementos estruturantes da cultura do engano, da promoção da miséria, do desconhecimento de si. O vagabundo que outrora conduzia um veículo de alta gama dorme hoje na rua sob o toldo de uma reconhecida marca que a expressão da mentira exibe como alvo legítimo para uma diferenciação individualista do ser e do seu desinteresse e cegueira perante quem passa e não existe. Resultado dos mercados que fabricam diferenças, o homem é uma curiosidade de repetições semióticas. Uma novidade do passado.

2.

Quando éramos modernos manifestávamos os nossos desejos singulares, lutávamos pela liberdade e igualdade, a fraternidade era, por vezes, um equívoco, enquanto se manifestava um individualismo autónomo amplificava-se a ruptura com as tradições mais conservadoras. Na intimidade do espelho descobria-se a estima por si, o desejo de ser e sair com identidade clara. Da religiosidade íntima à profanação do universo privado, o espaço social é despudoradamente o seu prolongamento. Há uma falsa liberdade do vazio, a ausência da perspectiva, da crítica onde ética e moral se confundem no exercício de um pacifismo arrepiante perante a modelagem de poderes obscuros. Por outras palavras, o desinteresse pelo outro num processo agnóstico pela não intervenção social como se a passagem pelo túnel sem luz das ditaduras desembocasse inadvertidamente numa paisagem idílica, de múltiplos acessos, como se passasse, metaforicamente, de um inverno gelado e miserável, à primavera do consumo de massas, à entrada imediata do que antes era referenciado como espaço do sonho impossível. O hedonismo individualista como «ideologia» de uma pequena burguesia ascendente cujos troféus, junto da vizinhança, eram as representações fotográficas nas paradisíacas praias das Caraíbas onde se exibia a insustentável leveza da felicidade. Da teatralidade social ao endividamento assistido e estimulado a paisagem era tão só o campo minado dos agiotas e dos poderes sem escrúpulos. A excessiva informação de ofertas desestrutura uma sociedade que acaba de descobrir que o desejo impensável está mesmo ali na montra do real. A falta de consciência ideológica e a instabilidade social surgem como o grande paradoxo do novo escravo. De uma aparente emancipação à crispação de quem se viu extorquido, usurpado, espoliado da prometida vida em festa. Da emergência de um futuro à porta de casa à resposta desenfreada dos movimentos anacrónicos de obscuros poderes ao leme de uma frota ocidental à beira, ela própria, de ser engolida por um desconhecido buraco negro para o qual se dirige inconscientemente. O medo e as ameaças em nome de uma falsa e farsante estabilidade, os ácidos da inquietação e do temor, a ausência de futuro e o presente como um longo túnel sem saída estão a aniquilar o sul do ocidente num campo de concentração mortífero tão de acordo com a estética destrutiva do norte. E esta montra do gabinete de curiosidades pode estar a pouco tempo de fazer implodir a crença de um mundo melhor.  
 

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